#09 - LUGARES

Pessoas que são famílias de acolhimento de idosos, que trabalham em lares, em centros de dia, que fazem apoio domiciliário... são pessoas que me merecem uma profunda admiração. Cuidar dos nossos velhos já não é fácil, mas cuidar dos velhos dos outros é de uma abnegação, de um altruísmo e de uma capacidade de amar o próximo que eu não sou capaz de medir em palavras.

A minha avó não teve uma vida fácil. Ficou viúva aos 29 anos, com uma filha de dois nos braços e toda uma vida solitária pela frente. Cresceu no tempo em que as mulheres eram de um homem só e sempre manteve a máxima de que "Se Deus me quisesse com um homem, não me tirava o meu.". Durante toda a vida carregou às costas a mágoa que desde aí lhe ficou, cultivou no peito a angústia da morte e sofreu-a sozinha. Pouco ou nada fala sobre o assunto. Nunca falou. A fotografia do casamento, a única que conheço dos dois, esteve escondida por trás das outras anos e anos. A cabeça começou a falhar, a doença começou a tomar conta dela, aliou-se à mágoa e veio uma ruindade profunda mas nada planeada.

Nos olhos da minha avó só se via tristeza e maldade. Deixou de tomar conta de si, do seu corpo, das suas atitudes. Mas a cabeça, essa, estava sempre a funcionar, sempre a artilhar esquemas, a alimentar ideias sem fundamento e a aumentar o egoísmo, um egoísmo duro de quem não sabe já o que esperar do que lhe resta da vida. Moeu-nos a cabeça. Fez-nos perder a paciência. Chorámos muitas vezes, praguejámos outras tantas, desesperámos. Tínhamos chegado ao fim da linha. Decidimos levá-la ao psiquiatra. Toda a rua ficou a saber. Pela boca dela queríamos interná-la, livrar-nos dela. Depois disto tudo se foi enrolando como uma bola de neve. O Parkinson a crescer, as células cerebrais a morrer junto com a capacidade que tínhamos inicialmente para dar resposta a tudo o que ela precisava. Já nada era solução. E a decisão mais difícil foi tomada. Um lar era a melhor opção. Não queríamos despejá-la. Queríamos que alguém pudesse tomar conta dela, todo o dia, todos os dias, que nada lhe faltasse e que ela estivesse bem.  Seguiu-se uma busca louca por um sítio acessível e com condições. Não é fácil, há muitos lares, mas uns têm filas de espera de anos, outros servem apenas para os ricos e os que têm preço baixo e lugares disponíveis, na maior parte das vezes, são garagens ou sótãos que têm tudo menos a dignidade que o fim da vida merece.

Há pouco mais de dois anos descobrimos a nova casa da minha avó. Um sítio com pessoas amistosas, com muito jeito para as pessoas e com um profundo amor pelo que fazem. Há pouco mais de dois anos escolhemos o lar da minha avó.

Desde que para lá foi vimo-la melhorar de dia para dia. A solidão fugiu dela e os risos e as gargalhadas voltaram. Passou a conhecer a gratidão, a paciência, voltou a gostar das pessoas e a saber como dizê-lo. Tem quem cuide dela, mesmo quando nós não podemos, vemo-la muitas vezes, voltou a fazer malha e renda, já se ri de anedotas, já presta atenção às notícias e diz "Não se preocupem, eu estou bem". Quando vou buscá-la e passamos na rua dela, baixa a cabeça e lamenta "A minha casinha...". Mas estamos descansados, sabemos que é feliz lá.


Por isso, por haver pessoas como estas, por haver quem mude a vida de pessoas singulares e de famílias inteiras, por terem dado uma nova casa e uma segunda família à minha avó, hoje eu estou muito grata pelo lar que escolhemos, ou que sem querer nos escolheu a nós.

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